10 de janeiro de 2007

Peço-lhe muita desculpa…


Praça de táxis do hospital, chuva, miudinha mas que incomoda, olho pelo espelho lateral, um pobre homem numa cadeira de rodas, barba por fazer e roupas simples, movimentos acelerados, chegou rapidamente ao carro, na boca um cigarro apagado, tive dificuldade em percebe-lo.
Pediu para o levar a casa, após algum esforço lá se conseguiu sentar, tinha um corpo magro e um cheiro incomodativo, sinal que descura a higiene. Fui colocar a cadeira na mala do carro e o cheiro acentuou-se, reparei que estava húmida, pensei que fosse da chuva que estava a cair, mas depressa percebi que era realmente urina, tentei nem pensar que se tinha acabado de sentar, coloquei a cadeira na mala do carro com o máximo de cuidado para que não entrasse em contacto aquela humidade. De volta ao carro, o cheiro nauseabundo fez com que não conseguisse olhar para ele, sem o enfrentar perguntei-lhe para onde ia, numa voz rouca, e quase imperceptível lá me disse que era para o Vale de Santarém, que martírio, pensei, 8 kms a ter que aguentar aquele cheiro. Pelo caminho e a tentar aliar-me do odor, com ajuda do vidro que levava aberto, interroguei-me como é possível alguém chegar a este ponto, o mínimo que devia fazer era lavar-se, custava assim tanto?
Chegados ao Vale de Santarém indicou-me para onde devia ir, numa estrada velha de maquedame, via-se ao fundo uma barraca, foi para lá que o levei, via-se um amontoado de coisas velhas a fazer de telhado, as paredes com umas ripas velhas, deixavam perceber que por ali o frio entrava sem pedir licença. Parei o carro o mais próximo da porta, com humildade perguntou-me quanto devia, respondi-lhe, e com alguma dificuldade foi ao bolso das calças retirar o dinheiro, uma nota de 5 euros amarrotada e algumas moedas, era o dinheiro que tinha, o bastante para pagar o táxi, pagou e pediu-me gentilmente para ir buscar a cadeira, não precisava de o ter feito, mas fez questão disso.
Com a mesma dificuldade que teve em entrar, lá conseguiu sair, fiquei a segurar a cadeira para que fosse mais fácil sentar-se, assim que consegui, espreitei para o banco, aquilo que mais temia, aconteceu, uma enorme mancha no tecido preto, antes que tivesse tempo de pensar alguma coisa, veio um "peço-lhe muita desculpa…" o que é que se diz perante um situação destas? acredito que lhe tenha custado tanto a admitir a sua culpa, como me iria custar a mim a limpar, não consegui dizer nada, apenas fiz um movimento com os ombros, sinal para que ficasse descansado, ouviu-se mais uma vez, peço-lhe muita desculpa…
Entrei dentro do carro, dei meia volta e vim para Santarém, fui lavar o carro para que o cliente seguinte, não percebesse o que se tinha passado.

2 comentários:

Unknown disse...

Estou a adorar os relatos do teu dia a dia.
No fundo todos temos sempre alguma coisa para contar, mas há profissões que são bem mais copiosas que outras. E depois também é preciso saber contá-las
Como este senhor,infelizmente, há milhares em Portugal.
Cada dia mais a solidão,e a falta de condições deixam pessoas que precisam de apoio e de alguém para os cuidar, sózinhos.
Este é um drama de Portugal, e que deveria ser tratado com muito mais cuidado pelo Estado.

Elso Lago disse...

E a humanidade, evoluida civilização, nas suas multiplas eras de prosperidade, ainda não percebeu que o mais importante de tudo é o respeito e a compaixão pelo seu semelhante.

A minha visão mais optimista diz que "estamos num mundo de merda".

Parabéns pelos teus relatos.